Por que Olavo de Carvalho não é evangélico


Desde a leitura de O Jardim das Aflições e O Imbecil Coletivo I, adquiro e recomendo as obras de Olavo de Carvalho para alunos e membros de minha igreja. Carvalho é um erudito que escreve bons textos, especialmente sublinhando as fragilidades e falácias do viés ideológico de esquerda. Ele é um forte proponente do pensamento conservador e de direita, sempre acerta mais do que erra e eu o considero um aliado naquilo que denomino “pauta cristã” da cultura.

Alguém me perguntou o que eu achei do texto Por Que Não Sou “Evangélico”, publicado por Carvalho em 03/09/2018. Simples: a resposta dele é consistente com suas convicções, como católico apostólico romano. Em quatro pontos ele argumenta que os evangélicos distorceram o ensino de Jesus sobre a salvação. Carvalho sugere que Jesus Cristo ensina que a salvação “só vem por um único meio: comer o Seu Corpo e beber o Seu sangue” — quer dizer, participar da Eucaristia nos termos do entendimento católico romano —, mas Lutero, Calvino [e o protestantismo em geral] instituíram “o biblismo, o culto do texto bíblico, fazendo deste, em vez da Eucaristia, o centro da revelação cristã, reduzindo portanto o cristianismo a uma ‘religião do livro’ (ahl-al-kitab) tal como a entendem os muçulmanos”. Ele conclui afirmando que “é meu direito e meu dever considerar isso uma heresia, um escárnio e um escândalo, temendo pelo destino eterno de todos os que se deixaram enganar por tão grosseira patifaria”.

A postagem foi comentada e todos os que opinaram contrariamente a Carvalho foram devidamente enxovalhados pelos “olavistas” de plantão.
Como cristão conservador eu me identifico com Carvalho em alguns pontos, mas, quanto ao post em questão, a coisa em que ele mais acertou foi ao declarar “não sou autoridade nenhuma em matéria de Teologia”. Não é mesmo. E ele vai longe demais ao rotular Lutero, Calvino e os evangélicos de hereges, escarnecedores e patifes, pelas seguintes razões:

Primeiro Olavo de Carvalho informa que, mesmo não sendo teólogo, é capaz de ler adequadamente: “mas uma coisa que sei fazer é ler. Ler e compreender”. E ele diz fazer isso “não só em português e em outras línguas modernas, mas em algumas antigas”. Daí, afirma ler razoavelmente o texto grego do Novo Testamento e propõe que “em parte nenhuma do Evangelho Nosso Senhor diz que ler a Bíblia ou mesmo acreditar nela vai nos salvar. Não há ali sequer uma frase, um trechinho, uma palavra, em que Ele nos recomende a leitura do grande livro”.

Qualquer leitor perceberá o raciocínio circular: Carvalho diz que protestantes erram por instituir o biblismo, mas, no cerne, seu argumento é o seguinte: “Eu proponho uma interpretação correta da Bíblia; eis o ensino correto da Bíblia sobre Eucaristia; percebam que não consta na Bíblia qualquer dito de Jesus recomendando a leitura das Escrituras”. Em suma, ele usa a Bíblia para dizer que a própria Bíblia não é recomendada por Jesus; ele usa a Bíblia para sugerir que o entendimento protestante dos Sacramentos é herético. Ele não difere dos protestantes neste ponto: Busca extrair a base para suas crenças e práticas dos Evangelhos, ou seja, argumenta como “evangélico” contra os Evangélicos. Mais biblista do que isso, impossível.

É plausível questionar a própria “boa leitura” dos Evangelhos, por parte de Carvalho. Repetindo, ele assevera que “em parte nenhuma do Evangelho Nosso Senhor diz que ler a Bíblia ou mesmo acreditar nela vai nos salvar. Não há ali sequer uma frase, um trechinho, uma palavra, em que Ele nos recomende a leitura do grande livro”. Será que isso corresponde ao que, de fato, consta no texto do Novo Testamento? Eis o que eu encontro — e aqui cito a tradução do Novo Testamento de Frederico Lourenço, que pode ser considerada “neutra” (nem “católica”, nem “evangélica”).

Em Mateus 22.29, Jesus repreendeu aqueles que não conheciam as Escrituras: “Jesus, respondendo, disse-lhes: Equivocai-vos por não conhecerdes as Escrituras nem o poder de Deus”. Ora, repreender quem não conhece a Bíblia equivale a recomendar que a Bíblia seja lida e conhecida.
Em João 5.39-40, Jesus afirma que a Bíblia dá testemunho sobre ele: “Investigai as Escrituras, visto que julgais ter nelas a vida eterna: também elas testemunham sobre mim. E vós não quereis vir a mim, para terdes a vida”. Nosso Senhor diz ainda que a “vida” (salvação) é desfrutada quando cremos no testemunho da Bíblia e nos dirigimos até ele (até o próprio Jesus). Um bom leitor enxergará, neste texto, uma recomendação de Jesus para que encontremos o testemunho dele na Escritura.

De fato, para Jesus, se alguém quer encontrá-lo, deve fazê-lo nas Escrituras. Isso quer dizer que recorrer à Bíblia para aprender sobre Jesus não corresponde a “culto do texto bíblico”, como apregoa Carvalho, e sim, a obedecer ao próprio Redentor.

Jesus ensinou que os parentes do homem “rico” — na parábola de Lucas 16 — encontrariam salvação lendo e ouvindo “Moisés e os profetas” (Lucas 16.29). Esta designação — Moisés e os Profetas” — constitui o modo judaico de apontar para o Antigo Testamento. Dito de outro modo, para Jesus, a salvação exige que se dê ouvidos ao que está revelado na Bíblia. Isso não seria uma recomendação do próprio Jesus, para que leiamos e conheçamos as Escrituras?

Jesus usou a Bíblia para provar que ele é o Messias prometido pelos profetas:

Em Mateus 21.42, ao ser rejeitado pelos judeus, ele citou Salmos 118 (117): “Jesus disse-lhes: Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram transformou-se em pedra angular; isso é obra do Senhor e é admirável aos nossos olhos?”. Em suma, os adversários de Jesus deviam ler e compreender corretamente os  Salmos.

Em Lucas 24.26-27, Jesus explicou seu próprio ministério de salvação expondo o ensino do Antigo Testamento: “Não tinha o Cristo de sofrer essas coisas para entrar na sua glória? E, começando desde Moisés e de todos os profetas, interpretou-lhes, em todas as Escrituras, as coisas que lhe diziam respeito”. Trocando em miúdos, para Jesus, um bom método de evangelização é consultar na Bíblia onde constam ensinos sobre sua vida e ministério. Apesar de não haver aqui nenhuma ordem para ler a Bíblia, não é a consulta à Escritura implicitamente recomendada?

Em João 5.24, Jesus relaciona a salvação não à Eucaristia e sim à fé em sua Palavra e em Deus Pai: “Amém amém vos digo que quem ouve a minha palavra e crê n’Aquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a julgamento, mas passou da morte para a vida”.
Ao ensinar que, para Jesus, “o ingresso na vida eterna, só vem por um único meio: comer o Seu Corpo e beber o Seu sangue”, Carvalho relaciona as palavras de instituição da Eucaristia, em Lucas 22.19 e 1Coríntios 11.24-26, com João 6.54-56.

De fato, em João 6.54-56 Jesus afirma que a salvação exige que comamos e bebamos dele: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu ressuscita-lo-ei no dia derradeiro. Pois a minha carne é o alimento verdadeiro e o meu sangue é a bebida verdadeira. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele”.

O ponto de debate entre os intérpretes é se João 6 pode ser equiparado aos textos de instituição da Eucaristia dos Evangelhos Sinóticos ou de 1Coríntios. Eu entendo que não. Em minha exposição do Evangelho de João, defendi que a doutrina central do cap. 6 é “Deus nos dá pão” e “pão” deve ser entendido de três modos:

Primeiro, Deus nos dá o sustento material. Jesus demonstra isso em João 6.1-15, multiplicando pães e peixes para milhares de pessoas.

Segundo, Deus nos sustenta em nossa peregrinação. Jesus é superior a Moisés. Se durante o Êxodo Deus sustentou cotidianamente os crentes com o “maná”, que era o “pão do céu” dado durante o ministério de Moisés, agora Deus sustenta os que creem por meio de Jesus, verdadeiro “Pão da Vida” (Jo 6.30-35).

Terceiro, Deus nos salva e sustenta pela Palavra de Jesus, uma vez que Jesus é tanto “Pão da Vida” quanto “Verbo de Deus” que concede vida (Jo 1.1-5; 6.41-65). Se isso é assim — e creio que uma boa leitura do texto permite tal conclusão — “comer” e “beber” de Jesus, em João 6, equivale a crer nele, acolhendo sua Palavra. Saber que é unicamente nele que devemos depositar nossa confiança. Não há base em João 6 para qualquer sacramentalismo e sim, para a fé em Jesus, em cuja Palavra encontramos a segurança da salvação.

De fato, para os cristãos protestantes e evangélicos (especialmente os de linha reformada calvinista), o desfrute da salvação exige duas coisas: que a igreja pregue e ensine o evangelho; e que este seja acolhido no coração por obra do Espírito Santo. É por isso que a igreja se empenha em fazer discípulos de Jesus batizando e ensinando, como lemos em Mateus 28.18-20: “E Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Indo, pois, tornai discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a cumprir todas as coisas que vos mandei [e estas coisas estão registradas na Bíblia]. E eis que estou convosco, todos os dias, até a completude do tempo”.

Por fim, o argumento de Carvalho sobre a expressão grega τοῦτο ποιεῖτε, “fazei isto”, em Lucas e 1Coríntios, coloca peso em apenas parte da sentença, desconsiderando o importante complemento εἰς τὴν ἐμὴν ἀνάμνησιν; “em memória de mim”. Ao dizer no início de seu post que é bom leitor do idioma grego e ponderar como se o sentido destas palavras fosse cristalino, Carvalho engana o leitor, pois neste ponto ele não fornece sua interpretação informada do texto grego, apenas replica a leitura majoritária da Igreja Católica Apostólica Romana. Ao mesmo tempo ele desinforma ao dar a entender que Lutero, Calvino e demais protestantes pensavam a mesma coisa sobre a Eucaristia. De fato, Carvalho deixa de mencionar (a meu ver, intencionalmente) todo o intenso e profundo estudo e debate sobre o assunto (que ele provavelmente conhece muito bem). Ele não explica porque Lutero afirmou que, à luz das Escrituras, a Eucaristia nos termos da Missa Católica é blasfema. Nem os embates entre Lutero e Zuínglio sobre transubstanciação e consubstanciação. Nem a posição conciliadora de Calvino sobre a questão. E ele dá a entender que os evangélicos não consideram a Eucaristia como Sacramento e Meio de Graça (o que os reformados calvinistas consideram). Em suma, ele, pensador profundo em outras ocasiões, produz um texto raso sobre algo que exige mais cuidado e acuidade teológica.

No frigir dos ovos, a impressão que fica é que, em Por Que Eu Não Sou “Evangélico”, Olavo de Carvalho explica que ele não é evangélico simplesmente porque já é católico romano. Seu entendimento da religião e hermenêutica das Escrituras se dão com os óculos do romanismo. Ele decide considerar correta a interpretação romanista de João 6 e dos textos que falam sobre a Eucaristia. E escolhe definir como herética a interpretação protestante e evangélica dessas passagens. Rotula os evangélicos de biblistas, ao mesmo tempo em que tenta provar seu ponto argumentando a partir da Bíblia (ou seja, fazendo uso de uma metodologia biblista).

Seu post não retira dele nenhum mérito, mas confesso que achei decepcionante. Continuo respeitando-o como pensador com quem me identifico em alguns pontos. E certamente continuarei comprando e divulgando seus bons livros. Para ser sincero, louvo a Deus pelo texto de Carvalho, no sentido de que Deus nos ajuda a não acolher nenhum ídolo. Ao tratar tão rasteiramente com as sublimes verdades do evangelho, o respeitável autor de O Jardim das Aflições revela que todos nós, seres humanos que vivemos sobre esta terra, não passamos de pecadores que precisam ser salvos pela graça.

Fonte: http://www.misaelbn.com/por-que-olavo-de-carvalho-nao-e-evangelico/
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