ELEITOS,MAS LIVRES


Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio.

Resenha: Franklin Ferreira.

Norman Geisler é formado no Wheaton College (BA e MA.), Detroit Bible College (Th.B.) e na Universidade Loyola (Ph.D.). Durante muito tempo foi professor no Seminário Teológico de Dallas, e atualmente é presidente do Southern Evangelical Seminary, em Charlotte, na Carolina do Norte. Ele já tem vários volumes publicados em português, incluindo Ética cristã e Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã (Vida Nova) e, em co-autoria, Resposta às seitas (CPAD), Reencarnação (Mundo Cristão) e Amar é sempre certo (Candeia).

O mais recente lançamento de Geisler é intitulado Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. O livro tem oito capítulos principais, e mais doze apêndices. Na primeira parte, Geisler lida com o problema da soberania de Deus e da liberdade humana, apontando as alternativas históricas (calvinismo e arminianismo) e propondo sua visão do assunto, que ele assume como “calvinismo equilibrado” (em contraposição ao que ele chama de “calvinismo extremado”). Seus capítulos finais tratam do “arminianismo extremado” e com um apelo à moderação. Seus apêndices cobrem uma ampla gama de estudos históricos e teológicos, ligados ao tema do livro.

Ao se começar a leitura desta obra, não se leva muito tempo para que o leitor teologicamente mais instruído passe a entender que este trabalho é qualquer coisa menos uma “visão equilibrada” da eleição. Eleitos, mas livres tem a intenção de apresentar um ponto de vista que é simplesmente uma forma de arminianismo disfarçado com outro nome, algo tão óbvio que o leitor gostaria de saber como exegetas e teólogos da estatura de João Calvino, John Owen, B.B. Warfield e John Murray não viram isto!

O livro tem três problemas principais. O primeiro problema que atinge o leitor é a tentativa descarada de Geisler de redefinir a terminologia teológica tradicional. Por exemplo, em seu entendimento, “calvinista extremado é alguém que é mais calvinista do que João Calvino (1509-1564), de cujos ensinos vem o termo. Visto ser possível argumentar que João Calvino não cria na expiação limitada (...), segue-se que todos os que o fazem são calvinistas extremados” (p. 63). Ele assume que há uma descontinuidade dentro da tradição reformada, seguindo a controversa tese de R. T. Kendall (mencionado numa nota de rodapé na página 177) – mas em nenhum lugar ele interage com respostas eruditas que já foram escritas refutando este ensino (cf. as obras de Paul Helm, Calvin and Calvinists, e o erudito trabalho de Joel Beeke, The quest for full assurance, ambos lançados pela Banner of Truth, este último a ser lançado em português)!

Aliás, em seu apêndice sobre Calvino (ap. 2) ele concentra-se apenas na questão do alcance da expiação (passando por cima dos comentários de Calvino que dariam margem para a crença na expiação eficaz), simplesmente ignorando todo o ensino do reformador sobre eleição e responsabilidade moral. O mais irônico é que ele também não demonstra estar em acordo com estas formulações de Calvino!

Geisler já havia feito tal coisa com Agostinho! Vale a pena dar uma lida em seu verbete “Agostinho de Hipona”, em Walter A. Elwell, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, vol. 1 (Vida Nova), pp. 32-35. Neste texto ele simplesmente afirma que Agostinho cria numa eleição baseada na presciência de Deus! Agora ele afirma que este ensino pertence ao “jovem” Agostinho, em contraposição com o “velho” (por que não maduro?), ligando seu ensino “extremado” com o cisma donatista (cf. ap. 3)! Um aluno de história da Igreja mais atento tomaria um susto aqui! Pois os principais escritos de Agostinho, relacionados com as doutrinas da graça, foram escritos no auge da controvérsia pelagiana!

Mesmo o uso que Geisler faz dos Pais da Igreja não é livre de confusões (cf. ap. 1). O ensino destes mesmos Pais é bem ambíguo neste ponto, contendo declarações que apoiariam os dois lados do debate. Basta dar uma lida nos escritos de alguns dos Pais mencionados, como Justino ou Irineu. É revelador que ele cite de passagem a famosa obra do erudito batista John Gill, The cause of God & truth, mas não mencione sua cuidadosa exegese bíblica, nem o tratamento erudito das fontes pós-apostólicas, onde ele demonstra que Agostinho não inventou uma nova doutrina, ele simplesmente sistematizou o pensamento dos pais que vieram antes dele.

O segundo problema que o leitor mais avisado achará é um fluxo quase contínuo de caricaturas relativas à posição de seus oponentes. É elogiável a bibliografia seleta que Geisler usa. Mas em nenhum momento ele interage seriamente com suas fontes. Ele constantemente está citando eruditos reformados do passado e do presente (tais como John Owen, William Ames e Jonathan Edwards, R. C. Sproul, John Piper e John Gerstner), mas muitas de suas citações são retiradas de contexto, não fazendo jus à argumentação dos escritos destes homens.

Por exemplo, em seu tratamento do entendimento de Edwards sobre o livre-arbítrio, ele cita um resumo desta obra, e não a obra completa (p. ex. notas n. 2 e 5, cf. referência bibliográfica na p. 281)! Onde ele responde aos argumentos de Edwards nesta obra, que tem sido considerado um clássico da filosofia? Parece que ele tenta responder aos argumentos de Sproul (que resume Edwards, em sua obra mencionada na nota n. 1 e 4), e não a obra original! O leitor atento acabará por ver que as posições destes eruditos citados acima são mal interpretadas ou falseadas, como também as notas de rodapé algumas vezes não tem ligação nenhuma com a declaração que pretende-se que apóiem. Outro ponto importante que poderia ser mencionado é que Geisler precisou redefinir os cinco pontos do calvinismo, para ele mesmo se auto-denominar “calvinista moderado” (cf. cap. 7, esp. p. 132).

O terceiro problema é uma negligência geral de real exegese, em favor de meras afirmações sem grande apoio nas línguas originais. Ainda que ele cite e ofereça sua interpretação de muitos dos textos-chave do debate (geralmente sem considerar o contexto onde estes mesmos textos estão inseridos), ele pouco interage com justiça com a interpretação que os reformados tem feito deles. Muitas vezes as formulações dos comentaristas reformados são simplesmente retiradas do contexto! Talvez quem mais sofra com isto seja o erudito batista John Piper. Num debate tão complicado como este não são clichês que resolverão a tensão, mas exegese. Recomendaria com muita força o estudo atento dos comentários de Romanos, Gálatas, Efésios e Hebreus, de F. F. Bruce, John Stott, William Hendriksen e de João Calvino (todos em português). O melhor que o leitor pode fazer é conferir a interpretação que estes eruditos cristãos fizeram com o próprio texto bíblico.

É revelador também que em nenhum lugar Geisler oferece uma definição de livre-arbítrio, ele apenas pressupõe que ele existe, e, ai, passa a buscar textos bíblicos que validem sua posição (não parece ser isto que ele faz no ap. 4?). Aliás, onde, nas Escrituras, é mencionado que o livre-arbítrio faz parte da imago Dei?

Quando ele menciona os perigos práticos do “calvinismo extremado” (que, agora, num lapso lógico esquisito, passa a rotulá-los como hiper-calvinistas), Geisler simplesmente repete clichês que já foram refutados por vários eruditos. Ironicamente ele menciona o importante estudo de Iain Murray, Spurgeon v. hyper-calvinismo: the battle for Gospel preaching (Banner of Truth), mas cita-o fora do contexto, sem interagir com o próprio livro ou com a posição de C. H. Spurgeon, ele mesmo um batista reformado, e um dos mais importantes pregadores e evangelistas da história da Igreja.

Permanece um mistério por que Geisler insistiu em redefinir uma terminologia que é reconhecida comumente por todos os lados do debate. Em lugar de clarificar a discussão, ele a nublou, o que não serve a nenhum propósito, e, na pior das hipóteses, engana aqueles que são menos instruídos na discussão relativa a estes pontos. O mais irritante de tudo isto é que seu livro é embalado por um discurso pretensamente lógico e filosófico. Do calvinismo histórico Geilser só mantém a doutrina da perseverança dos santos – mas isto, quando muito, é um arminianismo inconsistente! Ele teria prestado um grande serviço a seus leitores se admitisse simplesmente sua posição, em lugar de confundir o assunto com definições artificialmente impostas.

Sua tentativa de refutação daquilo que ele rotula de “arminianismo extremado” é irônica. Esta nova tendência surgiu em certos círculos evangélicos americanos, a partir do fim da década de 1980. Teólogos como Clark Pinnock e John Sanders tem defendido uma variante da teologia do processo, conhecida como “free will theism”. Eles tem afirmado que Deus nem é soberano nem tem conhecimento do futuro. Em última instância, o futuro é uma possibilidade aberta. Mas Geisler, em sua resposta à este novo movimento teológico, por causa de sua redefinição da soberania de Deus, para adequá-la à sua crença no livre-arbítrio, só pode se refugiar no irracionalismo, contra as implicações filosóficas desta vertente.

Examinar e responder a cada inexatidão achada em Eleitos, mas livres requereria um livro inteiro. Recomendaria o livro Soberania banida, de R. K. McGregor Wright (Cultura Cristã), que talvez seja a melhor defesa da fé reformada histórica. O interessante é que ele é mencionado de passagem umas duas vezes, mas Geisler nem interagem com esta importante obra! Para um bom estudo histórico desta controvérsia, honesto e erudito, mas escrito de forma popular, recomendaria Sola Gratia, de R. C. Sproul (Cultura Cristã). Este livro aborda as diferentes posições de Pelágio, Agostinho, João Cassiano, Martinho Lutero, João Calvino, Tiago Armínio, Jonathan Edwards, Charles Finney e Lewis Chafer. Cada capítulo, além da avaliação do ensino de cada teólogo, tem leituras complementares, além de uma lista de obras significativas de todos deles, para cada leitor, ao ir direto às fontes, e chegar às suas próprias conclusões.

Deve ser mencionado que Geisler, em meio às controvérsias que se seguiram à subscrição de alguns líderes evangélicos ao documento “Evangélicos e Católicos Juntos: Missões Cristãs no Terceiro Milênio” (1997), algum tempo depois, em palestra à “Theological Evangelical Society”, afirmou que não existe nenhuma diferença substancial entre o ensino bíblico da justificação pela graça e o ensino católico romano, como afirmado nos Cânones de Trento! Este fato talvez exponha seus reais pressupostos teológicos e filosóficos, ao tentar misturar a fé evangélica com um neo-tomismo aristotélico de tendências racionalizantes.
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Franklin Ferreira é bacharel em Teologia pela Universidade Mackenzie e mestre em Teologia pelo Seminário Batista do Sul (RJ). Diretor do Seminário Martin Bucer e consultor acadêmico de Edições Vida Nova, Franklin é co-autor do livro “Teologia Sistemática” e autor dos livros “Servos de Deus” (Fiel) e “A Igreja Cristã na História” (Vida Nova).

Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio (São Paulo: Editora Vida, 2001), 284 p. Traduzido por Heber Carlos de Campos do original inglês Chosen but free (1999).

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